Análise de crianças: desafio e desejo

Escrito por: Débora Ratti Bortoluzzi em 13/11/2020

A personagem Mafalda, tão sagaz em suas colocações, me remeteu a pensar sobre a análise com crianças.Tão presente em minha formação de fundamentação psicanalítica e que de forma profunda permeia aos que dela se autorizam analistas de crianças, pois sabemos que não trata-se em lidar com a criança apenas enquanto sujeito, ou o sujeito a vir à ser, mas também inclui os pais. Diante disso, entendemos que a psicanálise com crianças considera a importância do lugar da criança narcísica dos pais para que eles possam abrir espaço para a criança da realidade, à qual vem para o tratamento.

 

Serge Leclaire em seu estudo magistral “Mata-se uma criança” (1977), demonstra a relação entre o narcisismo primário e a criança imaginária ideal que permanece no inconsciente como representação primordial, que podemos relacionar de acordo com ele, com o lugar de filho no inconsciente dos pais. O autor ainda afirma “Existe para cada um sempre uma criança a matar, um luto a cumprir e a refazer continuamente, de uma representação de plenitude, de gozo imóvel [...]”, portanto renunciar a criança narcísica que o filho representa para propiciar o surgimento da subjetividade do filho é um desafio para os pais que precisam ser sustentados e ao mesmo tempo conduzidos a enfrentar essa questão. Sem isto não há possibilidade de análise no sentido da decisão a que nos referimos acima, que Freud propunha quando devemos avaliar a procedência desta indicação. Penso que essa diferença se desvela nas entrevistas preliminares, através dos desdobramentos da queixa, para se chegar a demanda.

 

Primeiramente, podemos citar pontos importantíssimos levantados por A. Jerusalinsky (2011) para indicar especificidades desta clínica: “ A relação da criança com o fantasma em que há uma primazia do registro imaginário, o tempo lógico da criança, em que o outro está situado como aquele que permite a “expansão ficcional do outro”. Portanto, há de apresentar à criança um setting propício para esse imaginário se expandir, há de respeitar o tempo referido ao futuro da criança e o que ela poderá encenar dos ideais a que deve responder, há de dotar seu ato com a importância do significante, que tem ali uma função e ainda, há de representar esta função de outro disposta a compartilhar o “faz-de-conta” em que terá lugar a associação livre da criança.

Temos então o plano de acolhimento da criança e de suas manifestações espontâneas no espaço analítico, temos a descoberta da parte dela, deste outro enigmático com quem ela irá (ou não) relacionar-se. Trata-se para o analista, de dar lugar e de mergulhar na rede de significantes que a criança vai arranjar, sobre o pano de fundo dos significantes familiares trazidos pelos pais, trata-se de indicar para a criança a especificidade deste lugar próprio da análise: um lugar de palavras, onde quer que elas se manifestem, já que as formas de expressão da criança são variadas. Finalmente, trata-se de abordar o sofrimento psíquico e o que a análise propõe como solução, a fala de associação livre e de escuta. Quando a criança indica que entendeu este funcionamento e começa a endereçar-se ao analista, pode-se então iniciar a análise enquanto tal.

 

Como dizia Lacan, o que não se pretende é propor uma “técnica”, mas sim o estilo próprio de cada um na sua própria relação com a psicanálise, ou seja, refere-se ao desejo do analista. Penso ser importante demarcar que “nada garante o analista no exercício da psicanálise” (Mathelin,1994), a não ser sua própria relação com a psicanálise que dispõe sobre o seu desejo de analista, que é no caso, sobre seu desejo de analisar crianças.

 

Referências bibliográficas:

FREUD, S. (1913). Sobre o início do tratamento (Novas recomendações sobre a técnica da psicanálise). Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, vol XII, pg 164-187. RJ: Imago, 1974.

FREUD, S. (1914). Recordar, repetir e elaborar (Novas recomendações sobre a técnica da psicanálise). Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, vol XII, pg 193- 203. RJ: Imago, 1974.

JERUSALINSKY, J. Para compreender a criança: chaves psicanalíticas. SP: Instituto Langage, 2011.

LACAN, J. La direction de la cure et les principes de son pouvoir. Écrits. Paris: Seuil, 1966, (pg 585).

MATHELIN, C. Clínica Psicoanalítica com niños. Buenos Aires: Ediciones Nueva Visión, 1994.