O ATO ANALÍTICO E A FORMAÇÃO DE UM ANALISTA

Escrito por: Marta Dalla Torre e Valéria Codato Antonio Silva em 19/07/2023

No princípio era o verbo. Freud, por meio da vigência da palavra, diante de um não saber e interrogado pela clínica da histeria, fez ato, ao fundar a psicanálise com a descoberta do inconsciente.

 

Lacan não se cansa de apontar o conluio entre esses dois campos - da palavra e do ato - que atestam o valor da inscrição significante.

 

Ao introduzir a compreensão dos sintomas histéricos numa articulação entre mente e corpo, a psicanálise freudiana demarcou uma ruptura epistemológica com outros campos do saber, principalmente em relação à psiquiatria, à neurologia e também à psicologia. Pois, o método da associação livre possibilitou que os fenômenos neuróticos pudessem ser percebidos como o produto final de um processo de simbolização, carregados de um sentido oculto a ser desvelado no curso do tratamento, também denominado de “cura pela palavra”, no próprio ato que implica um sujeito: “a verdade na fala” (Lacan, 1966). Fala que revela nos atos falhos, esquecimentos e equívocos a alienação do sujeito a um desejo outro, “desejo do Outro”, que aponta, para além de seu princípio constituinte da cadeia significante que determina sua ex-sistência, também sua condição de gozo no sintoma.

 

Portanto, a palavra que cura não é a palavra do psicanalista, tomada como verdade tal qual um oráculo que revelará o “significado oculto” das manifestações sintomáticas. A cura deverá percorrer as palavras do próprio analisante, escutadas e atravessadas pelas intervenções de um analista ao longo de um percurso, no decorrer do qual o sujeito irá indagar-se sobre seu gozo e sua condição de objeto, na possibilidade da transformação do modo de satisfação pulsional promovida pelo sintoma. Como afirmava Lacan sobre a especificidade do ato analítico: “A tarefa é do analisante, o ato é do analista” (1967-68), no interior de uma práxis que define como “uma ação realizada pelo homem (...) que o coloca em condições de tratar o real pelo simbólico” (1964).

 

A fala do analisante constitui uma enunciação, uma queixa ou uma demanda, um ato onde o sujeito engaja seu ser ao dirigir-se ao analista que, por meio de suas intervenções aponta para o não sentido do significante, significante que representa o sujeito para um outro significante, até as ultimas conseqüências, pois o sentido pelo sentido é da ordem do saber e “o saber é um gozo” (Lacan, 1969/1970). O sentido vela o real da falta estruturante que possibilitou o desejo, e suportar o fracasso na tentativa de recuperação daquilo que sempre escapa – real da falta – é o que promove a mudança na economia de gozo de um sujeito e marca a diferença da cura analítica de outros métodos psicoterápicos.

 

Ato, diferentemente da ação (agieren), refere-se ao campo do significante que inclui a palavra dita, a não-dita e a mal-dita do analisante. Ato Analítico é aquele ato que, operado pelo analista, na e pela transferência, promove o corte que rompe o circuito da repetição que aliena o sujeito ao lugar de objeto. Pois, a transferência, para além da dimensão simbólica, comporta uma atuação (mise en acte) do inconsciente, onde o analista se faz semblante, no lugar de sujeito suposto ao saber, sustentado pelo “desejo do analista”. Este último não se refere ao desejo que concerne à pessoa do analista, mas, contrariamente, a um lugar des-subjetivado, do des-ser, somente possível àquele que suporta o lugar da alteridade radical.

 

O Ato Analítico, conceito original introduzido por Lacan para dar conta do que seja uma análise e de como acontece que um analisante possa se tornar um analista, atesta que a experiência da psicanálise é única para cada sujeito, assim como a formação de um analista. Pois, o ato analítico só encontra seu princípio em um outro ato: o do analisante que ele foi, e a cada ato do analista ele renova esse ato inaugural.

 

Lacan, no Seminário “O Ato Analítico” (1967-68), afirma que uma psicanálise é o que se espera de um psicanalista, e que a psicanálise se pratica com um psicanalista, o que aponta para a especificidade de uma práxis e de uma formação profissional que se constitui num problema crucial para o campo psicanalítico.

 

Se, para Freud, toda análise é terapêutica, tanto para aquele que quer se curar de algo quanto para aquele que se propõe a ser analista, para Lacan, toda análise é didática quando levada a seu término, pois ela fatalmente produzirá um analista. E, a única trajetória que pode autorizar o ato analítico é a experiência da análise de cada um. Só podemos falar da formação de um psicanalista!

 

A passagem de analisante a analista não pode se dar de forma ritualizada, o que a caracterizaria no campo do sagrado, mas se dá com a mesma temporalidade do ato psicanalítico – a posteriori – como nas formações do Inconsciente, que seguem a lógica do tempo da constituição do sujeito e que se esbarram na dimensão daquilo que Lacan denominou de Real, da ordem do impossível.

 

A formação de um analista se dá um-a-um e também entre pares, pois é a relação estabelecida entre o sujeito e seu percurso de análise, de supervisão (análise de controle) e de estudo teórico, no interior de uma instituição, que faz um analista. Daí, a polêmica frase de Lacan na proposição de 9 de outubro de 1967: “O analista só se autoriza de si mesmo...entre pares”, numa pertença a um laço simbólico (instituição). Esse aspecto paradoxal da autorização do analista revolucionou inteiramente a maneira de pensar a formação do psicanalista e a estrutura das instituições psicanalíticas, pois, sustentar permanentemente a formação é, mais que uma necessidade, um compromisso ético da psicanálise.

 

Afinal, quando o autorizar-se e o instalar-se analista pode se constitui em um ato?

 

“Talvez quando o analisante tiver levado sua análise tão longe que tenha sido inscrito, no inconsciente, de forma irreversível, que o desejo é sem objeto, e puder reorganizar sua existência e prática clínica a partir disso, testemunhando que opera a partir do desejo do analista, como desejo da pura diferença.” (Ramos, p.16)

 

E, assim, fazer sua prática com um estilo que lhe é próprio, sem, contudo, desviar-se da ética da psicanálise.

 

Referências

Revista da APPOA n.39– Tempo, Ato, memória. 2010

Revista da APPOA n.29 – Onde fala um analista - 2005

Harari,R. O que acontece no ato analítico? RJ, Cia de Freud, 2001.

Harari, R. O psicanalista: o que é isso? RJ, Cia de Freud, 2008.

Lacan, J. Escritos. RJ, Jorge Zahar, 1998.

Lacan, J.(1969-70) O seminário 17: O avesso da psicanálise. Rj, Jorge Zahar, 1992.

Lacan, J.(1967-68) O Seminário: O Ato psicanalítico. Publicação interna.

Lacan,J.(1966) O Seminário: A Lógica do Fantasma. (inédito)

Lacan,J. (1964) O Seminario: livro 11, Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. RJ, Jorge Zahar,1992